Sabemos que diante de grandes tragédias a ação imediata é mais importante que as discussões jurídicas, no entanto, não podemos deixar de lado os temas que são carregados com a urgência da catástrofe. Discutir a responsabilidade do Estado é uma dessas questões.
As enchentes que assolam o Rio Grande do Sul em maio de 2024, trouxeram à tona não apenas a devastação causada pelas fortes chuvas, mas também questionamentos sobre a responsabilidade civil do Estado diante dessas tragédias. A situação caótica que se instaurou, com dezenas de mortos, milhares de desabrigados e danos materiais expressivos, levanta discussões sobre a prevenção e a capacidade de resposta do governo em situações de crise.
As ações de prevenção são anteriores ao desastre climático, enquanto que a mitigação inicia-se com o evento, diminuindo a magnitude dos danos.
Nesse sentido, o princípio da prevenção, consagrado no direito internacional consuetudinário, obriga os Estados a adotarem medidas preventivas para evitar danos ambientais. Isso significa agir antes da ocorrência do dano, tendo em vista que muitas vezes não é possível restaurar a situação anterior após a ocorrência do dano.
Visa antecipar a ocorrência do dano ambiental, impedindo que ele aconteça. Isso é importante porque as causas e os efeitos desses danos já são conhecidos cientificamente. Por exemplo, já se sabe que a retirada da mata ciliar provoca perda de biodiversidade e assoreamento dos rios. A irreversibilidade de certos danos, reforça a importância de adotar medidas preventivas para evitar práticas prejudiciais ao meio ambiente.
Ao consagrar os princípios da prevenção e da precaução, a lei estabelece que o foco deve ser evitar ou minimizar os impactos negativos no clima, principalmente atuando diretamente na fonte desses impactos, e não apenas compensando danos já causados.
É importante distinguir o princípio da prevenção do princípio da precaução. Enquanto o primeiro se aplica a impactos já conhecidos, o segundo se aplica a situações de incerteza científica, exigindo medidas preventivas mesmo quando não há certeza sobre os riscos.
A aplicação do princípio da prevenção pode ser vista em diversos instrumentos jurídicos e na jurisprudência, como o estudo de impacto ambiental, que busca identificar danos ambientais e adotar medidas preventivas. No Brasil, esse princípio está presente na Lei da Política Nacional do Meio Ambiente e em outras legislações específicas.
Das leis específicas podemos citar o Código Ambiental do Rio Grande do Sul, elaborado em 2000, que sofreu significativas alterações em 2019, com o intuito de flexibilizar as exigências ambientais. O projeto, proposto pelo governo Eduardo Leite, reduziu ou alterou 480 pontos da lei ambiental do estado, diminuindo as exigências e concedendo, em alguns casos, o auto licenciamento.
Essas mudanças na legislação ambiental do estado levantam questionamentos sobre o papel do governo na prevenção de desastres naturais. A redução das medidas de proteção ambiental pode ter contribuído para agravar os efeitos das enchentes e aumentar o risco de tragédias como a que o estado enfrentou.
Entre as críticas feitas por especialistas, destacam-se:
- A eliminação das medidas de proteção, como aquelas destinadas às áreas adjacentes às unidades de conservação, áreas reconhecidas pela Unesco como reservas da biosfera, bens tombados pelo Poder Público, ilhas fluviais e lacustres, entre outras.
- A supressão de mecanismos de apoio financeiro do Estado para a proteção ambiental, incluindo pesquisas, centros de pesquisas, manutenção de ecossistemas e racionalização do aproveitamento da água e energia.
- O afrouxamento do licenciamento ambiental, criando grave risco ambiental, com a introdução da Licença por Adesão de Compromisso (LAC), que permite que o empreendedor inicie a instalação e operação baseadas apenas em uma declaração.
- A terceirização disfarçada através do artigo 56, que permite a contratação de pessoas físicas ou jurídicas para cumprir prazos para emissão de licenças, desconsiderando o instrumento do concurso público.
Essas alterações são verdadeiros retrocessos na proteção do meio ambiente e contribuem aumentando a vulnerabilidade dos ecossistemas e aumentando a probabilidade de desastres naturais. Além disso, levantam questionamentos sobre a responsabilidade do Estado na prevenção e na resposta a essas tragédias, destacando a necessidade de políticas públicas eficazes em situações de emergência climática.
A falta de investimentos em prevenção e a demora na implementação de medidas efetivas também devem ser fatores de responsabilização. Um exemplo da ação dos governos é a falta de repasse de um terço das verbas prometidas aos municípios gaúchos desde o ciclone extratropical que devastou parte do estado em setembro de 2023. Muitas cidades estão enfrentando novas tragédias devido às chuvas recentes, tendo em vista a natureza cíclica de tais eventos.
Dos R$ 500 milhões prometidos para ações emergenciais, apenas R$ 325 milhões foram enviados até abril deste ano. Isso se deve, em parte, à falta de projetos apresentados pelas prefeituras, o que poderia ter evitado ou mitigado os novos desastres. O governo do estado foi o maior beneficiário dos repasses, recebendo R$ 82 milhões, utilizados principalmente para ações emergenciais, mas deixando de lado ações preventivas.
Da responsabilidade
Em tempos de crises ambientais, a responsabilidade do Estado transcende a mera resposta imediata. É crucial implementar políticas públicas eficazes de prevenção e proteção ambiental, bem como garantir infraestrutura adequada para enfrentar os impactos das mudanças climáticas, evitando tragédias como as que ocorreram recentemente no Rio Grande do Sul. Nesse sentido, ações de mitigação, adaptação e resiliência climática se tornam essenciais para garantir a segurança e o bem-estar da população frente aos desafios das mudanças climáticas.
A conduta omissiva ou deficiente, mesmo que indiretamente, contribui para a ocorrência do dano ambiental e está na cadeia causal da responsabilidade civil. O conceito amplo de poluidor abrange toda e qualquer pessoa física ou jurídica, de direito público ou privado, responsável, direta ou indiretamente, por atividades que causam degradação ambiental (art. 3º, IV, da Lei 6.938/1981). Assim, aquele que contribui, mesmo que indiretamente, para a ocorrência do dano ambiental por meio de sua conduta omissiva pode ser responsabilizado solidariamente com outros agentes (públicos e privados) que contribuíram direta ou indiretamente para o dano ambiental.
Já com relação à omissão ou atuação insuficiente do Estado e sua responsabilidade civil pelo dano ambiental, a legislação constitucional da proteção ambiental como tarefa estatal. Isso obriga o Estado a uma adaptação constante das medidas às situações que necessitam de proteção, além de uma responsabilidade especial de coerência na autorregulação social. Em outras palavras, os deveres de proteção ambiental vinculam os poderes estatais, restringindo sua liberdade na adoção de medidas relacionadas à proteção do meio ambiente. No caso do Poder Executivo, sua discricionariedade é claramente limitada, restringindo sua liberdade na escolha de medidas protetivas ambientais para garantir a máxima eficácia do direito fundamental em questão.
Não há uma “faculdade” discricionária concedida aos entes estatais para decidir se devem ou não agir em tais questões, mas sim obrigações e comandos jurídicos imperativos que não podem ser ignorados. Isso também é considerado um benefício da “constitucionalização” da tutela ambiental, já que as normas constitucionais impõem e vinculam a atuação administrativa a um dever permanente de considerar o meio ambiente, protegê-lo diretamente e exigir seu respeito pelos demais membros da comunidade estatal.
De acordo com a legislação ambiental, a responsabilidade civil do Estado pelo dano ambiental é clara, tanto em uma perspectiva comissiva quanto omissiva, ao caracterizar expressamente na condição de agente poluidor, a jurisprudência pacífica do STJ afirma que “qualquer que seja a qualificação jurídica do degradador, público ou privado, é de natureza objetiva, solidária e ilimitada”. A “cláusula geral” da responsabilidade civil do Estado, consagrada no art. 37, § 6º, da CF/1988, também reforça esse entendimento, ao estabelecer que “as pessoas jurídicas de direito público e as de direito privado prestadoras de serviços públicos responderão pelos danos que seus agentes, nessa qualidade, causarem a terceiros, assegurado o direito de regresso contra o responsável nos casos de dolo ou culpa”.
Não é apenas a ação poluidora do ente estatal que pode ensejar sua responsabilidade, como no caso em que o próprio Estado realiza diretamente atividades lesivas ou potencialmente lesivas ao meio ambiente sem o devido licenciamento e estudo de impacto ambiental (construção de estradas, usinas hidrelétricas, etc.). No caso dos desastres do Rio Grande do Sul, é sabido que desde o ano de 2019 passa por enchentes e eventuais medidas de mitigação, foram insuficientes, pois executadas em caráter de emergências, esperando sempre que o desastre acontecesse para então agir.
O Professor Dr. Delton Winter de Carvalho, em sua obra “Desastres ambientais e sua regulação jurídica” (2020), elenca alguns critérios a serem demonstrados para a responsabilização do Estado por omissão por desastres em razão do descumprimento de deveres de proteção e cuidado ambiental, seriam eles:
- Descumprimento de um dever de agir normativo ou desconformidade ao Direito
- Descumprimento de atribuições decorrentes da própria competência e função estatal envolvida
- Omissão frente a riscos conhecidos, para os quais detinha capacidade para evitá-los
A omissão do Estado em fiscalizar e impedir a ocorrência do dano ambiental é igualmente grave do ponto de vista constitucional, devido à imposição e força normativa dos princípios da prevenção e da precaução (art. 225, § 1º, IV, da CF/1988, e art. 1º, caput, da Lei de Biossegurança – Lei 11.105/05). Como afirmado por Leme Machado, “o Direito Ambiental engloba as duas funções da responsabilidade objetiva: a função preventiva – procurando, por meios eficazes, evitar o dano – e a função reparadora – tentando reconstituir e/ou indenizar os prejuízos ocorridos. Não é social e ecologicamente adequado deixar-se de valorizar a responsabilidade preventiva, mesmo porque há danos ambientais irreversíveis” (MACHADO, Direito ambiental brasileiro, p. 414).
É fundamental repensarmos não apenas as políticas de prevenção e proteção ambiental, mas também a forma como o Estado responde aos desastres, garantindo a segurança da população diante dos desafios das mudanças climáticas. Não deixe de conferir o artigo completo em nosso site para uma análise aprofundada sobre esse importante tema.
/Pricila Aquino e Milena Balduíno